Inicio esse texto saudando a memória e a força das velhas que habitam em mim e comigo. A força de todas aquelas que à noite, debaixo da gameleira sagrada, me ensinam cânticos de vida e morte. Essa dança divina. Daquelas que falam da vida como um grande presente que a terra nos deu, de como é grandiosa a oportunidade de experimentar, de pisar o chão do novo, de novo, de como éramos antes de sermos roubados e violentados, das alegrias e dos perigos dessa terra.
Essa escrita é coletiva, é sobre pertencimento e reconhecimento, de si, dos meus e dos nossos. É um broto, ligado a raízes antigas, originárias! Por isso, agradeço e aciono a memória das velhas, minhas guardiãs nessa retomada.
O roubo da memória não é um acaso, é um plano!
Passei muito tempo distante de casa, presa num território morto chamado cidade. Hoje reconheço que preciso falar do esquecimento como um plano, um plano branco, de escravidão e morte. Nossos corpos, nossas terras, nossas línguas, nossas memórias, nossos costumes, nosso sagrado particular, tudo foi machucado, banalizado e roubado pela consciência branca. Por isso, é preciso mexer nas feridas, ir às profundezas da memória e lançar luz nos escombros do esquecimento, dos não ditos, dos nomes das mulheres ocultos nos registros de nascimento dos próprios filhos, das mulheres abandonadas, da mãe solteira, mãe de oito, oito sementes plantadas a qualquer jeito. É preciso cavoucar.
O lugar de onde se é: as raízes das árvores velhas
No recorte do mapa acima, está sinalizado o território de onde minha família materna é: Vila Tapuio, povoado de Miguel Alves, Piauí. Todos os meus ancestrais maternos vieram de lá. Em trânsito passaram por Duque Bacelar e Coelho Neto, ambos no Maranhão, rota comum dos indígenas em fuga ou em andanças dessa região.
Atualmente, minha mãe e minhas tias moram em Duque Bacelar. Há outros parentes ainda vivendo em Miguel Alves, como tios, uma irmã, sobrinhos e primos. Há 13 anos eu moro em São Luís, no Maranhão, mas também nasci no Piauí.
No processo de retomada da minha identidade originária, percebo que a história do lugar se confunde com a nossa própria história. As trajetórias de vida das minhas ancestrais, contadas pelas minhas mais velhas, estão carimbadas pelo silenciamento e apagamento do nosso povo, fruto do projeto etnocida da colonização. Hoje essas lacunas são preenchidas, em algum nível, pelas memórias que emergem do território onde nosso tronco está enraizado. Dessa maneira, recorro à Vila Tapuio e sua história para auxiliar no processo de retomada da minha identidade indígena.
Historicamente, a região do Baixo Parnaíba Piauiense é habitada por diferentes povos indígenas, como os Aranhí, os Anapuru, os Kariri e os Tremembé. Entretanto, há registros como o mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú que apontam a presença dos indígenas Aranhí, no século XVII, no território onde está situada a Vila Tapuio.
O termo Tapuio (com variações Tapuya, Tapui, Tapuia) que dá nome à Vila tem origens e significados diversos, mas em geral, foi utilizado de forma genérica no período da colonização do Brasil para designar povos indígenas que não pertenciam ao tronco linguístico tupi e também àqueles que eram considerados “inimigos”, “rebeldes”, “bárbaros”, que não aceitavam a violência ao seu modo de existência e a invasão de suas terras. É importante sinalizar que o povo Aranhí também era chamado pelos colonizadores de Tapuya.
Outro indício da presença marcante do povo Aranhí nessa região é que a Vila Tapuio está próxima a “Índio Mandulandin”, povoado que faz referência a um importante líder indígena Aranhí. O guerreiro indígena Mandu Ladino nasceu em São Miguel dos Tapuio, Piauí, e foi responsável por chefiar uma grande batalha contra os fazendeiros portugueses, que ficou conhecida como “a Revolta de Mandu Ladino” (1712 – 1719) e contou com a participação de diversos povos originários, findando com a morte do líder Aranhí nas margens do rio Parnaíba.
Hoje, olhando para o lugar de onde estou, vejo que minha ancestralidade indígena tem possivelmente raízes Aranhí, a considerar pelos relatos das minhas anciãs e do próprio lugar onde elas nasceram e viveram a maior parte de suas vidas.
Antes de afirmar, já era: minhas memórias do Punaré
O rio Parnaíba, conhecido por nós povos originários como Punaré, é uma importante fonte de manutenção da vida, física e espiritual. É morada de caboco, cobra encantada, Cabeça de Cuia e Mãe D’Água.
Tenho diversas lembranças desse grande avô e sua abundância para com a gente que morava ao redor de suas margens. A maior parte das minhas memórias de infância está vinculada a esse rio. Lembro-me das incontáveis horas que minha mãe passava lavando nossas roupas à beira do rio, da pescaria, das crianças pulando das mangueiras para dentro do rio; lembro-me das caronas para fazer a travessia de canoa, como na foto acima. Eu adorava atravessar o rio de canoa e brincar com o limite Maranhão-Piauí: ora Maranhão, ora Piauí, mas que pra gente tinha mais a ver com união do que com divisão. Era do rio que a gente bebia, comia e banhava. Era do rio que vinha nossa força. Nosso sagrado, pro corpo e pra alma.
Não é fácil retomar a memória dos nossos, mas é necessário para mantermos nossa existência. Assim, eu finalizo esse texto reafirmando que, por trás de todo broto, há sim raízes de árvores antigas! E não importa em que condições essas árvores estão sobre a terra, firmes ou enfraquecidas, exuberantes ou ocultas, elas são árvores, não deixaram de ser o que são e continuam nutrindo com seus segredos, suas memórias e sabedoria ancestral os brotos de resistência que nascem a cada geração. Eu hoje sou broto, mas também sou terra fértil, pronta a germinar o reencontro com meu eu originário aprisionado há séculos na escravidão branca.O nosso rumo é a liberdade de ser quem se é. Terra viva! Terra livre!
Texto e fotos: Priscila Aguiar
Colagem: Priscila Aguiar e Luana Appel