Nós, o povo Anapuru Muypurá, somos originários da região Nordeste. O nosso povo ocupava, no século XVI, áreas hoje pertencentes aos estados do Maranhão, do Piauí e do Ceará. Atualmente, estamos em processo de retomada e autoidentificação contemporânea na região do Baixo Parnaíba, no Maranhão.
Registros históricos, a exemplo o mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, apontam que os nossos ancestrais já viviam nessa região no século XVII. De acordo com Anderson Lago, no livro “Brejo, Aldeia dos Anapurus”, os indígenas Anapuru eram divididos “em Anapurus-Mirins e Anapurus-Açu” e dedicavam-se mais à lavoura de alimentos de subsistência do que à pesca e à caça de animais. Costumes que ainda são mantidos por muitas de nossas famílias que ainda vivem no campo, plantando e cultivando.
“Fruta do Rio”: resistência Anapuru às margens do Rio Parnaíba
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) afirma que, segundo uma carta de 1686 do governador do Pernambuco, Anapuru é uma corruptela de Muypurá. É um dos elementos etnológicos mais antigos conhecidos dos indígenas do Brasil, a palavra significa “fruta do rio”. Hoje, nos autoidentificamos com os dois etnônimos: Anapuru Muypurá.
Segundo Felipe Costa Silva, no capitulo “Os Índios Anapurus” do seu livro “Matriz de São Bernardo: de capela a santuário”, os Anapuru devem ter descido diretamente o rio Parnaíba, fixando-se na região do Baixo Parnaíba, tendo localização compreendida em partes dos atuais territórios de São Bernardo, Santa Quitéria, Brejo, Anapurus e Chapadinha. “Seu grande reduto, a Nação dos Anapurus, era localizado no lugar denominado Arraial do Brejo, atualmente a cidade de Brejo”.
Em 1684, o povo Anapuru já vivia nas terras da atual cidade de Brejo, no Maranhão, e lutou contra os colonizadores portugueses que queriam invadir o nosso território. Na época, o governo da Província expediu várias ordens oficiais para que se fizesse guerra aos indígenas, considerados “bárbaros tapuias”. Muitos foram os conflitos e guerras que os nossos ancestrais enfrentaram contra os colonizadores.
Desde o início da colonização, o povo Anapuru resistiu o quanto podia às tentativas dos colonizadores em reduzi-lo e pacificá-lo definitivamente. A resistência dos indígenas Anapuru Muypurá era, sem dúvida, o maior obstáculo. Os frequentes ataques investidos contra os brancos eram sua resposta de defesa ao que eles consideravam, e até hoje consideramos, a invasão de nossas terras e violência contra nosso povo.
A Revolta de Mandu Ladino que se estendeu de 1712 a 1719, por exemplo, teve a participação de vários povos indígenas da então capitania do Piauí, inclusive do povo Anapuru, que se revoltaram contra a crueldade dos fazendeiros portugueses. Um “divertimento bárbaro” ideado por Cunha Souto e seu irmão era libertar os prisioneiros indígenas Anapuru um por um, alcançá-los a cavalo e decapitá-los com facões.
Uma revolta de seus prisioneiros, em 1712, matou Cunha Souto e seus soldados portugueses, e depois espalhou-se rapidamente, tornando-se a “mais séria e mais difundida de todas as rebeliões indígenas”. A insurreição foi chefiada pelo indígena Aranhí e Kariri de nome Mandu Ladino e durante sete anos ela foi ganhando proporções maiores, estendendo-se pelo sertão do Maranhão, do Piauí e alcançando o do Ceará. Mandu foi morto enquanto fugia atravessando a nado a foz do Parnaíba, encantando-se nas águas do rio. Hoje, é considerado um Encantado para muitos povos originários.
A Carta de Data e Sesmarias e o Aldeamento Brejo dos Anapurus
Depois de muitos conflitos, o líder dos indígenas Anapuru de nome Francisco Xavier, juntamente com Ambrósio de Sousa, capitão dos índios, solicitaram ao governador João de Abreu Castelo Branco as terras situadas “às margens da Ribeira do Parnaíba na parte chamada O Brejo, e Arraial que situou o Mestre de Campo Bernardo de Carvalho e Aguiar cujo alojamento estabeleceram desde o tempo de sua conversão ao grêmio desta Madre Igreja”. Os indígenas necessitavam de “três léguas de terras de comprido e uma de largo” para sustento da aldeia.
Em 1795, os indígenas conquistaram, por meio de uma Carta de Data e Sesmaria, “três léguas de terras em quadro, fazendo pião no templo daquela povoação, correndo os seus lados norte e sul, leste e oeste, e compreendendo-se no de sua demarcação, tudo que se acha dentro das ditas três léguas” na aldeia Brejo dos Anapurus. Até hoje há a pedra pião que serviu para marcar o território do povo ao lado da Igreja Matriz de Brejo (MA). Nela está esculpida a palavra INDIOS.
O documento assegurava que os “índios hajam, logrem e possuam as ditas terras como coisa sua; própria para eles e seus herdeiros, ascendentes e descendentes sem pensão, nem atributo algum, mas dízimo a Deus dos frutos que nelas tiver e lavrar”. No entanto, em 1880, quando os indígenas de Brejo dos Anapurus reivindicaram seu direito a essa terra que estava sendo tomada, foram chamados de “supostos índios”, tendo o direito ao território ao qual pertencemos violado e negado pelos os mesmos que o invadiram a primeira vez.
Esse processo foi uma estratégia etnocida de silenciamento/apagamento da identidade indígena e de negação/violação do direito originários, imposta por uma lógica colonizadora, que até hoje é a base da nossa sociedade, está na estrutura. O território da aldeia Brejo dos Anapurus foi usurpado dos nossos ancestrais, posteriormente recebeu o nome Vila do Brejo e atualmente é a cidade de Brejo. Perseguições, massacres, escravizações e o etnocídio institucionalizado colaboraram para que fôssemos considerados extintos desde o século XIX.
A Retomada
Hoje, muitos de nós Anapuru Muypurá vivemos nas periferias das cidades, nas comunidades rurais, em estado de silenciamento da nossa identidade e apagamento da nossa história. Trago como exemplo a comunidade Morro do São João, localizada na periferia de Brejo.
O Morro do São João, comunidade apontada pela população local como “lugar de índio”, é composta por mais de 20 núcleos familiares indígenas da etnia Anapuru Muypurá que resistem há séculos aos efeitos destrutivos da colonização, como a invasão, os massacres, a desterritorialização do território ancestral, o silenciamento, a perda da língua e a marginalização.
Lideranças, chefes de famílias e jovens da comunidade fazem parte da retomada do nosso povo Anapuru Muypurá no Maranhão, processo que vem se consolidando desde 2018 e que compreende outras comunidades e/ou núcleos familiares indígenas espalhados em Brejo e Chapadinha (MA). Nós, o povo Anapuru Muypurá, temos nos articulado com outros povos indígenas do Maranhão, como os Akroá-Gamella, Tremembé, Kariú Kariri e Tupinambá. Além do apoio de aliados como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
O Morro do São João é uma das periferias de Brejo em que há uma marcante presença indígena vivendo em contexto de vulnerabilidade socioeconômica. Devido à identidade Anapuru Muypurá, muitos moradores do Morro do São João relataram já terem sofrido racismo e preconceito dentro do município.
Guiados pelo caminho deixado pela ancestralidade, das memórias, saberes e práticas dos ancestrais que vêm sendo preservados pelos mais velhos e passados de geração em geração, atualmente nós, Anapuru Muypurá, gritamos ao mundo que estamos e sempre estivemos aqui.
Cavacando memórias, retomar a terra
Nasci e cresci em Chapadinha (MA), cidade que surgiu por volta do século XVIII, com fixação em 1783, e era aproximadamente a 500 metros do centro da cidade na direção Sul, mais precisamente no lugarejo chamado Aldeia, onde viviam indígenas Anapuru e atualmente é o bairro Aldeia. As narrativas orais dos mais velhos contam que entre as pedras das nascentes do bairro Aldeia, os Anapuru cultuavam a imagem de uma Encantada. Uma mulher que possuía uma cobra enrolada no corpo e que protegia o povo Anapuru de todos os males da humanidade.
Minha bisavó Deuzuila Machado, moradora do povoado Carnaúba Amarela, conta que uma ancestral nossa era uma indígena Anapuru que foi sequestrada pelos colonizadores na região de chapada onde hoje é o povoado Prata, interior de Chapadinha. Na época, segundo suas narrativas orais, Chapadinha era habitada por muitos indígenas Anapuru e tinha muitas aldeias na região. Memórias que cresci escutando dos meus troncos velhos e que fortalecem meu sentimento de pertencimento e a retomada da minha identidade indígena.
Falar de retomada é também falar da reconexão à ancestralidade. Ela que nos atravessa durante toda a trajetória de vida, nos costumes e tradições que são mantidos e expressos no nosso cotidiano, como a produção da farinha de Mandioca, o saber/fazer benzimentos e os remédios naturais que usamos para curar e cuidar dos enfermos. Na forma de vermos e estarmos no mundo, de plantarmos e cultivarmos na lavoura ou em nossos quintais, na relação que temos com a Natureza, nas nossas práticas religiosas como a Cura/Pajelança e o culto aos Encantados. São fios de resistências da presença do povo Anapuru Muypurá na região do Baixo Parnaíba Maranhense.
É cavacando memórias dos nossos mais velhos e retomando a conexão com o nosso sagrado originário, as encanturias, que nós Anapuru Muypurá temos tirado a pedra que tenta a todo custo nos apagar e silenciar.
Povo Anapuru Muypurá vive!
Texto, áudio e fotos: Lucca Muypurá