11 de novembro de 2021
Ser terra e a relação com o alimento

O que é ser terra? E o que é o alimento?

Quando me questiono, a única resposta que vem à minha cabeça é: adubo. Sim, adubo, de adubar, nutrir a terra, ser pra ela alimento. É um ciclo. A vida e a morte são a mesma coisa. Eu ser, sou terra, e ela é o que me permite ser. O alimento é terra, e de terra ele se alimenta.

Entender, ou tentar entender essa relação, tem a ver com fragmento, partícula, átomos, elétrons (nós, humanos, só sabemos o que nos é permitido saber). Para a unidade que nós compomos, somos “gigantescos”, assim como os elétrons. O entendimento é uma limitação para nós, pois nos lançamos à busca a partir do que conhecemos, porém o que buscamos não tem referência, e mesmo nos atravessando o tempo todo não sabemos reconhecer.


Falo de movimento, de parte, de pluralidade e diferença.

Enquanto destruímos a relação para entendê-la, ela permanece construção, o que sempre é. A terra nos ensina o tempo inteiro sobre isso, pois a terra nos transforma a partir do que ela é, nos faz humanos de sementes, e de sementes nos alimenta para nos transformar em terra.

O alimento é a metamorfose da terra: quando comemos estamos, na verdade, retornando para a terra de maneira íntima, pois nos conectamos a ela dentro de nós.

Se soubéssemos que estamos nos alimentando com a terra do jeito que ela é (solo, húmus), será que comeríamos? Será que não acharíamos nojeto? Bem, essas não são as interrogações para agora. Voltando ao assunto, matamos o que somos nós, matamos a terra, e cada vez mais, estamos entendendo que é o nosso corpo.

Poderia ser um entendimento menos doloroso. Bem, poderia, mas não queremos. Quando o alimento não é mais terra, o nosso corpo não o reconhece, pois nosso corpo só reconhece o alimento quando faz parte dele. Quando não questionamos a propaganda que nos mostra a comida perfeita, matamos a nós mesmos. Quando não questionamos o esquartejamento da terra, terminamos de morrer.

Anteriormente falei sobre ciclo. Os ciclos são unidades plurais, são imperfeitos, são regeneração. Então toda vez que mudamos ou interrompemos um ciclo na natureza, tiramos vida dela e consequentemente de nós mesmos. Se faz necessário voltar para a terra, para a relação com ela.

Não existe conexão com a natureza, existe retorno, porque nós somos natureza e não algo diferente dela. O retorno é, para cada natureza humana, uma viagem solitária de relação sólida; é se entender e se sentir como só mais um átomo, nada além. O que tem na terra só existe nela, e nós humanos não somos a terra, somos o que existe nela.

A terra é um círculo que começa pelo fim, e termina no começo, e ela é só um círculo/ciclo. Humanos são terra onde só a terra e cada um deles pode caminhar. Isso mesmo, a terra sabe também caminhar, assim como sabe florescer, falar, respirar e se mover. Afirmo tudo isso porque eu, ser terra, sou terra antes de ser.

A nossa memória é a digital da terra carregada por cada um. A nossa consciência é o registro de alegria e de dor da terra, ainda que muitas vezes não saibamos identificar.

Somos terra, somos alimento, e somos a parte que precisa voltar pro lugar de onde se desligou, porque a terra continuará sem nós, porém nós nada podemos ser sem a terra.

Pensar e falar sobre a relação com a terra me faz lembrar de sentimentos profundos, de atravessamentos ancestrais. Pensar na terra é Sankofa: saber que nunca é tarde para voltar e recuperar o que ficou para trás, e que é preciso pegar o que é importante.

Terra é sentir com o coração. Quando falo de coração não falo do que temos no lado esquerdo do peito. Agente começa a ter coração quando a gente começa a acreditar que tem coração. O que a gente tem no peito, na verdade, é uma raiz. Mas não é a raiz como a gente aprendeu não. É uma raiz que nos liga ao que veio antes, antes de nós, humanos.

Saber do começo é necessário para saber do final, pois, quem não sabe de onde veio tem menos chance de encontrar e reconhecer o seu destino. Gaia é a origem, o nosso principio e essência. Se nós, humanos, tirarmos de Gaia os bichos, as matas, as águas, morremos. Gaia é nossa mãe. Se não a respeitarmos, o que acontecer a ela acontecerá a nós também. Se ela sangrar, sangraremos, se ela não respirar, não respiraremos. Mas se nós morrermos, ela viverá.

A nossa mãe é também a própria criação. Nós somos os últimos a sermos criados por ela, e se não retornarmos pra ela, não vamos ser reconhecidos e não teremos a passagem para a vida definitiva.

Ir pro Orum é ir pra Gaia. O céu é na terra.

Só seremos capazes de retornar quando caminharmos para nós mesmos, e permitirmos que ela, a nossa mãe, nos transfigure, nos molde à sua maneira. Temos que amá-la, beijá-la com amor e respeito. Não podemos continuar acreditando na ilusão da nossa superioridade. A nossa mãe Terra se fez de si própria e se transformou para que pudéssemos viver com ela e nela, ela pode também se refazer e não nos ter mais aqui. Nesse último caso ela ainda está nos deixando escolher. Por fim, deixo aqui um ensinamento africano sobre Gaia: 

“Trate bem a Terra, ela não foi doada a você por seus pais, mas emprestada a você por seus filhos.”

Texto: Zica Pires
Fotos: Lucca Muypurá

MAIS RECENTES

III Encontrão e Mostra Audiovisual da Jacá: Juventude, Comunicação Popular, Resgate Ancestral e Direitos Humanos no Maranhão

III Encontrão e Mostra Audiovisual da Jacá: Juventude, Comunicação Popular, Resgate Ancestral e Direitos Humanos no Maranhão

Piquiá de Baixo, Maranhão, Brasil: uma comunidade resistente que completou 19 anos de luta por reassentamento e reparação integral, enfrenta diariamente os impactos das grandes indústrias de mineração, atravessada pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), com seus direitos humanos violados. No entanto, falar de Piquiá de Baixo não se resume ao sofrimento. A comunidade é […]

Faça parte da Agência Zagaia

Se você é originário, quilombola, de povos e comunidades tradicionais e trabalha com texto, áudio, vídeo, ilustração, foto, cordel, canto, dança – ou outra forma de comunicação – e quiser contribuir com a Zagaia, manda uma mensagem pra gente utilizando o formulário ao lado. Bóra comunicar!

9 + 11 =

Apoio