28 de março de 2025
Comunicação Popular: A correnteza que fortalece territórios e resiste ao silenciamento

Indígenas e Quilombolas do Maranhão ampliam vozes na II Oficina de Comunicação Popular na Amazônia, reafirmando a educação midiática como ferramenta de luta e autonomia

Nasci cercada por águas doces. O Rio Tocantins corre, arrasta e nutre o meu existir. Leva histórias e traz de volta outras tantas. Sou desse movimento. A comunicação sempre pulsou em mim como correnteza, um fluxo contínuo de encontros, escuta e voz.

Foi esse fluxo que me levou a outras margens. Às do Rio Ariaú, onde senti a força ancestral da natureza. Somada às experiências e aos caminhos que percorri, ela me permitiu chegar até aqui. E foi nas vozes de mais de 20 comunicadores de diversos cantos da Amazônia que encontrei espelhos. Ali, entre tantos territórios, percebi que cada um carregava um rio dentro de si — uma história que precisava ser contada, uma luta que não podia mais ser silenciada.

No Amazônia Jungle Hotel, serenamente situado em meio à mata nativa preservada, às margens do Rio Ariaú, em Iranduba, Amazonas, fomos acolhidos. O município, banhado pelas águas do Rio Solimões, está a cerca de 35 quilômetros de Manaus.

O Rio Ariaú, silencioso e profundo, fluía ao lado do hotel, carregando histórias e sendo testemunha desse encontro de rios-humanos que somos. Assim aconteceu a II Oficina de Comunicação Popular na Amazônia, realizada entre os dias 9 e 14 de março de 2025, pela Rede Wayuri, pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), com apoio do Instituto Democracia, Mídia e Intercâmbio Cultural da Alemanha (IDEM) e da Cooperação Alemã.

O calor úmido, misturado ao clima chuvoso da floresta, envolvia os participantes da oficina. Entre folhas que sussurravam e os ecos dos animais que vivem livremente na mata, comunicadores indígenas e quilombolas das regiões Norte e Nordeste do Brasil se reuniram, fortalecendo suas vozes e reafirmando o direito ancestral de contar suas próprias histórias.

A força da Comunicação Popular: Unindo vozes dos povos tradicionais do Brasil

No primeiro dia, ao nos apresentarmos, cada um trazia consigo um pedaço do próprio território. Do Maranhão para o Amazonas, Railson Guajajara falou da luta dos Guardiões da Floresta contra o avanço do desmatamento e a violência nas terras indígenas. Paula Guajajara, das Guerreiras da Floresta, destacou como as mulheres indígenas vêm ocupando espaços de decisão dentro das comunidades. Mary de Jesus e Michel Ahid, da Rádio TV Quilombo, reforçaram a importância da comunicação quilombola no Maranhão como um pilar fundamental para manter vivas as tradições e garantir que suas realidades sejam vistas e ouvidas.

Territórios que falam: Cada um trazia consigo um pedaço do próprio território. Entre palavras, sotaques e memórias, formamos esse círculo de partilha e resistência.

Railson Guajajara, voluntário no coletivo Guardiões da Floresta, percebeu durante a formação como a comunicação pode ser uma ferramenta essencial na defesa do território:

Palavra que ecoa como semente na mata. Railson Guajajara, voluntário no coletivo Guardiões da Floresta, durante a visita a Rádio Sapupema.

“A gente aprendeu a usar as tecnologias para mostrar a nossa realidade e denunciar os ataques ao nosso povo. Conseguimos não só gravar vídeos, produzir podcasts e mostrar para o mundo o que está acontecendo nas nossas terras, mas também elaborar nossos conteúdos com mais estratégia. A comunicação é importante.”

As Guerreiras da Floresta também compartilharam sua trajetória na comunicação. Paula Guajajara destacou a importância da oficina para ampliar suas possibilidades de produção:

Voz de mulher que é tronco forte, raiz que se entrelaça na terra e espalha luta. Paula Guajajara, das Guerreiras da Floresta, leva sua força e sabedoria à Rádio Sapupema.

“O que achei mais importante foi a criação de podcasts. Essa é uma ferramenta que ainda não utilizamos no site das Guerreiras da Floresta. Agora, com essa formação, vamos buscar usar mais esse meio para nos comunicarmos.”

O encontro também fortaleceu a voz de comunicadores quilombolas. Mary de Jesus compartilhou como foi importante romper o medo e perceber seu potencial:

Mary de Jesus tece sua voz como quem finca os pés na terra. No encontro, rompeu o medo, atravessou silêncios e fez da palavra morada. Sua história não se apaga, ela é raiz, é vento, é para sempre.

“Existe algo mais gratificante do que contar a nossa própria história e, ao mesmo tempo, ouvir a realidade de outras pessoas que enfrentam as mesmas lutas que nós? A maior lição que tirei dessa experiência foi enfrentar o meu próprio medo. Consegui romper essa barreira, e foi muito especial estar ali, falando sobre o meu território e a nossa história.”

Já Michel Ahid ressaltou que a oficina aprimorou sua forma de planejar conteúdo:

Entre ondas sonoras e raízes ancestrais, Michel Ahid, da Rádio TV Quilombo, fortalece a comunicação como território de luta e pertencimento.

“Antes, quando cobríamos eventos, não tínhamos um roteiro pronto — só tínhamos fé e coragem. Agora, podemos planejar com antecedência o que será feito em cada evento no território. Esse encontro foi fundamental para melhorar nosso trabalho!”

Pisei o chão descalça, sem pressa, sentindo na pele as histórias guardadas.

E eu? Eu estava ali como jornalista e comunicadora popular, como parte da Justiça nos Trilhos (JnT) e apoiadora da Agência Zagaia, mas também como alguém que busca, na comunicação, um caminho para resistir às atrocidades do capital — esse grande engenho que esmaga territórios e dilacera vidas, especialmente de quem mora no aperto e na agonia urbana de São Luís, no Maranhão.

Segundo o IBGE, São Luís registrou a maior inflação do país no último ano, atingindo com mais força as populações mais vulneráveis, em especial as mulheres. Mas a violência não é apenas econômica.

Na cidade que escolhi para me fortalecer e desaguar as águas do Rio Tocantins que habitam em mim, os ventos oceânicos não dissipam mais a fumaça tóxica, e os rios, que antes eram caminhos de vida, agora deságuam no mar carregando resíduos e rastros da devastação. Nos últimos anos, a capital maranhense tem figurado entre as cidades mais poluídas do Brasil. O Movimento em Defesa da Ilha alerta que, em 2023, os índices de qualidade do ar chegaram a ficar 903 vezes acima dos limites de segurança para emissões de dióxido de enxofre e ozônio. Como aponta a reportagem da Agência Pública:

“Em São Luís, a poluição atinge níveis alarmantes e o novo projeto pode poluir ainda mais.”

Os rios que correm pela Ilha de Upoan-Açu não encontram descanso. E aqueles que vivem aqui também não. Destaco esses dados para dizer que, após esse encontro com outras formas de existir, voltei ao centro, me resgatei e descobri que a minha sede é, de fato, a mesma missão da associação em que trabalho: fortalecer, com urgência, uma comunicação popular e insurgente no Maranhão. Uma comunicação que não surge apenas como alternativa, mas como espaço de denúncia e resistência diante das desigualdades

O encontro dos rios: Educação Midiática e conexões que fortalecem o desaguar

Mergulhando nas profundezas de cada momento do encontro e na forma como reverberou em nós, descobrimos, junto aos comunicadores de diversos territórios do Alto e Médio Rio Negro, do Xingu e de Rondônia, que comunicar é resistir. É proteger os povos e a natureza.

O que nos unia ali era mais do que a comunicação. Era o desejo de romper silêncios históricos, de levar ao mundo as vozes que, por tanto tempo, tentaram apagar. Durante a formação, Tainã Mansani, jornalista e coordenadora de projetos no IDEM, destacou a importância de eventos como esse para fortalecer a comunicação indígena e quilombola na Amazônia:

“Acredito que o principal valor está na conexão. Esses encontros reúnem pessoas e coletivos de diferentes regiões, permitindo que territórios distantes entre si — muitas vezes enfrentando problemas semelhantes — se encontrem e compartilhem experiências.”

Estávamos ali criando pontes entre rios. Assim como as águas de diversos cursos se unem para formar uma correnteza vigorosa, nossa comunicação se fundia em um encontro que se transformava em resistência.

Bem no coração da II Oficina de Comunicação Popular na Amazônia, entre trocas de saberes e a força da oralidade ancestral, um elemento essencial emergiu como fio condutor do encontro: a educação midiática. Não apenas como um conceito abstrato, mas como uma ferramenta concreta de resistência, autonomia e fortalecimento das narrativas indígenas e quilombolas frente às ameaças que seus territórios enfrentam diariamente.

Durante os dias de formação, ficou evidente que a comunicação popular não é apenas sobre relatar fatos, mas sobre reivindicar espaços, reconstruir histórias e garantir que as vozes dos povos tradicionais não sejam silenciadas. Mais do que nunca, a apropriação das ferramentas midiáticas se mostrou essencial para que cada comunicador presente pudesse articular estratégias para proteger e divulgar suas lutas.

Tainã Mansani destacou esse aspecto ao afirmar:

“Esse aprendizado reforça a necessidade de ampliar a comunicação entre os povos que estão sendo ameaçados. Muitas vezes, essa troca esbarra em barreiras técnicas, de infraestrutura ou de acesso à tecnologia. Essas dificuldades podem ser superadas por meio de intercâmbios e formações que promovam o compartilhamento de informações e estratégias.”

E foi exatamente isso que vivemos ali. A oficina proporcionou um espaço onde os comunicadores puderam explorar novas formas de narrativa e domínio técnico para fortalecer suas vozes. Para muitos, esse foi o primeiro contato com ferramentas como a produção de podcasts, roteirização audiovisual e planejamento de cobertura jornalística. Essas habilidades não apenas ampliam as formas de expressão, mas também potencializam a capacidade de denúncia e resistência frente às ameaças constantes que enfrentam em seus territórios.

Railson Guajajara, dos Guardiões da Floresta, expressou esse aprendizado ao perceber que, através da comunicação, é possível denunciar os ataques ao território e amplificar as vozes do seu povo. Paula Guajajara, das Guerreiras da Floresta, viu no podcast uma nova estratégia para alcançar mais pessoas e difundir a luta das mulheres indígenas. Já Michel Ahid, da Rádio TV Quilombo, encontrou no planejamento de conteúdo um caminho para aprimorar a cobertura de eventos e fortalecer a memória viva do seu território.

Outro ponto fundamental abordado foi a autonomia na comunicação. O evento não buscou impor um modelo midiático único, mas sim apresentar ferramentas que possam ser utilizadas de maneira estratégica pelos comunicadores indígenas e quilombolas. Como destacou Tainã Mansani:

“Nosso objetivo não é impor um modelo de comunicação, mas sim apresentar ferramentas que possam ser úteis aos comunicadores indígenas e quilombolas, permitindo que eles escolham de forma autônoma quais estratégias desejam adotar. É importante conhecer a comunicação hegemônica para saber usá-la quando necessário, mas sem que isso signifique apagar ou substituir as formas tradicionais de comunicação popular.”

A oficina intensiva em comunicação foi conduzida com a sabedoria e a prática de fortalecer saberes pela potente jornalista Pâmela Queiroz, criadora do Caatingueira — um podcast sobre biomas, mulheres e saberes populares, financiado pelo Instituto Serrapilheira no Camp Serrapilheira 2023 e produzido pela Rádio Unaé.

Com uma abordagem dinâmica e participativa, Pâmela incentivou os participantes a experimentarem a comunicação popular na prática, promovendo trocas entre diferentes gerações e realidades territoriais. Seu olhar sensível para os processos comunitários e sua experiência na produção de narrativas sobre saberes tradicionais foram essenciais para inspirar novas formas de comunicação comprometidas com a valorização dos territórios e de suas histórias.

A jornalista Pâmela Queiroz destacou a profundidade da experiência vivida ao longo das atividades:

Foi uma experiência transformadora para mim, tanto como pessoa quanto como profissional. Aprendi muito mais do que compartilhei, porque realmente foi um processo de transformação para minha trajetória.

Para ela, um dos pontos mais marcantes foi a forma como os participantes se entregaram à prática comunicativa, compreendendo a importância do fazer coletivo:

O envolvimento visceral deles com aquele fazer, a disposição para experimentar a comunicação na prática, sabendo o porquê estavam ali, fez toda a diferença no desenrolar da oficina.

Outro aspecto que chamou sua atenção foi a diversidade geracional dos participantes e a forma como interagiam entre si. Com idades variando entre 13 e 36 anos, os grupos mantiveram um diálogo respeitoso e horizontal, favorecendo trocas significativas:

Era incrível como todos conversavam de igual para igual e se ouviam com muito respeito. Isso foi fundamental para a interação entre os grupos, para a qualidade da produção e, sobretudo, para que compartilhassem entre si as realidades de suas comunidades e territórios, refletindo sobre como a comunicação pode impactar esses espaços.

Outras paisagens desse rio, que foi a II Oficina de Comunicadores da Amazônia, nos levaram à Rádio Sapupema, onde participamos de um programa ao vivo, sentindo na pele o pulsar da comunicação comunitária em ação, assim como a roda de conversa na sede do Instituto Witoto, uma organização liderada por mulheres indígenas que atua no fortalecimento da cultura, educação, arte, música e economia indígena. Localizado no bairro Parque das Tribos, em Manaus, o instituto nos proporcionou encontros inspiradores com as mulheres da Cozinha Boca da Mata, do Ateliê Derequine e com as mães do Jofo Nimairama – Casa de Conhecimento Ancestral, que promove a Pedagogia Murui-Muinane Witoto.

A oficina demonstrou, na prática, como é possível aliar o conhecimento das mídias tradicionais e digitais à valorização das narrativas ancestrais. Cada entrevista gravada, cada vídeo editado e cada podcast produzido ali não era apenas um exercício técnico, mas um ato político de resistência. Era o encontro entre os rios da tradição e da inovação, fluindo juntos para fortalecer territórios e reafirmar identidades.

Cada uma dessas experiências nos mostrou que comunicar é criar espaços de resistência e pertencimento. Nossos rios se encontraram, e deles brotaram novas águas, novas correntes. Seguimos fluindo.

Em breve, esse nosso desaguar de rios e criatividades múltiplas ocupará espaços e tecerá comunicações mais alinhadas aos interesses dos territórios. Aguarde!


Créditos das fotos: 📸 Are YudjaGabriel MuraJefferson Macurap e Lanna Luz.

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